O escritor italiano Stefano Benni morreu em Bolonha aos 78 anos. Após uma doença que o afastou da vida pública nos últimos anos, foi considerado um dos grandes satiristas de seu país. Deixou uma obra prodigiosa que combinava riso e pensamento crítico, delírio imaginativo e perspicácia cívica.
A sua literatura, reconhecível por uma mistura única de humor, fábula e sátira social, cativou gerações de leitores e foi traduzido para vários idiomas. A notícia de sua morte desencadeou uma onda de despedidas e releituras, com um gesto compartilhado: lembrá-lo através de suas páginas, como ele próprio desejaria.
Uma despedida na sua cidade
Benni morreu em sua cidade natal, Bolonha, onde passou boa parte de sua vida e da vida pública. Estava aposentado há anos devido a uma doença que lhe dificultava a fala, mas isso não diminuiu a sagacidade que o tornou famoso.
Foi a sua família quem lhe transmitiu a mensagem mais fiel ao seu espírito: em vez de homenagens solenes, propôs-lhe leia suas histórias em voz alta e compartilhá-los com amigos e entes queridos, um ritual que o próprio autor praticava com músicos e atores.
A sua editora e numerosas figuras culturais italianas destacaram o seu papel como caneta livre e pouco ortodoxa, capaz de desmantelar a retórica com ironia e ternura. Leituras públicas e encontros em sua memória estão acontecendo em Bolonha e outras cidades.
Há poucos meses, uma maratona de leitura de Estrasburgo trazido de volta à vanguarda suas criaturas fantásticas, prova de que seu universo continua pulsando no imaginário coletivo.

Do Bar Sport para um universo próprio
A estreia nas livrarias aconteceu em 1976 com Bar de esportes, um instantâneo cômico do bar provinciano transformado em um microcosmo nacional. Esse volume estabeleceu expressões e cenas que hoje fazem parte da fala cotidiana, como a lendária “Luisona” da vitrine, e abriu as portas para um grande público para Benni.
Desde então, o autor criou um mapa literário muito pessoal: Terra! (1983) imaginou uma apocalipse da ficção científica tão louco quanto premonitório; Estrasburgo (1984) povoou uma ilha com animais impossíveis; Comici spaventati guerrilheiros (1986) hibridizou romance de bairro, aventura e sátira; A companhia dos celestinos (1992) retratou crianças rebeldes em um país de paródia.
Paralelamente, o café submerso de O bar sob o mar (1987) tornou-se teatro de histórias coralenquanto Eliantho (1996) consolidou seu estilo de fantasia crítica e compaixão pelos perdedores. O rótulo "Bennian" logo passou a ser associado a neologismos, travessuras linguísticas e uma imaginação desenfreada.
Seus livros somavam milhões de leitores e traduções em mais de trinta línguas, e várias obras deram o salto para outros formatos: em 2011, Massimo Martelli levou ao cinema Bar de esportes, com Claudio Bisio no elenco.

Humor, linguagem e comprometimento
Benni sempre sustentou que o riso não é evasão: por baixo do absurdo, havia uma ética do olhar e uma crítica às hipocrisias públicas e privadas. Sua escrita tragicômica e lúdica alternava crises de absurdo com lampejos melancólicos de ternura humana.
Entre suas afinidades literárias ele mencionou T.S. Eliot e Edgar Allan Poe, e admirava o gênio visionário de Samuel Beckett e Stanley Kubrick. Essa fusão de tradição e vanguarda nutriu um estilo capaz de alcançar popularidade sem renunciar à ambição artística.
Benni gostou como poucos jogo de linguagem: paródias, trocadilhos, palavras inventadas e ritmos de jazz eram sua caixa de ferramentas para expandir o que pode ser dito e desmantelar solenidades.
Em entrevistas, ele repetia frequentemente que seu senso de humor o havia salvado mais de uma vez. Em suas páginas, a ironia se torna mecanismo de resistência diante do dogma e do desânimo, e um convite constante para nunca parar de imaginar.

Jornalismo, palco e tela
Antes de escrever ficção, Benni adquiriu experiência na imprensa e em revistas satíricas. Ele escreveu em O poster, L'Espresso, Panorama o A República, e colaborou com títulos de cultura popular como Linus y O Mágico, além dos semanários Coração y TangoEssa escola jornalística aprimorou sua presa satírica.
No palco e na música escreveu monólogos e peças de teatro, e aliou-se a artistas como o músico de jazz Umberto Petrin no projeto misterioso, inspirado por Thelonious Monk. Sua curiosidade criativa o levou a saltar de um gênero para outro com facilidade.
Deixou também a sua marca no cinema: foi argumentista de Topo Galileu (1987) e co-dirigiu Música para Animais Velhos (1989), com Dario Fo e Paolo Rossi. Décadas depois, apareceu na adaptação filme de Bar de esportesSeu relacionamento com Beppe Grillo nos primeiros dias do comediante rendeu capítulos memoráveis.
Sua figura foi retratada no documentário A aventura do Lupo (2018), que analisa a trajetória quase verdadeira do autor e sua lenda pessoal.

“Il Lupo”: origens e personagem
Nascido em 12 de agosto de 1947, cresceu entre a cidade e os Apeninos. A construção do estrada do sol, que devastou sua casa de infância, marcou sua desconfiança nas instituições e sua inclinação para as margens.
Seu apelido, “Il Lupo”, vem daqueles anos: independência feroz, noites de uivos com cães, rebelião e modéstia sobre sua vida privada. Ele próprio admitiu que parte de sua biografia foi inventada, um jogo de proteção contra a atenção pública.
Seu ativismo assumiu diversas formas: Grupo Wolf Promoveu bolsas de estudo para jovens imigrantes; com Altan e Pietro Perotti participou do Museu de Criaturas Imaginárias; e ele defendeu persistentemente as escolas públicas e a cultura como um bem comum.
Aqueles que trabalharam com ele lembram-se de um autor severo com o seu próprio texto e generoso com os outros, um parceiro de cena disponível para leituras, workshops e palestras longe da pompa oficial.

Leitores, legado e o que resta
Benni era um leitor voraz e um escritor prolífico: além de seus títulos mais conhecidos, publicou Espíritos, Saltatempo, Margherita Dolcevita, Pão e tempestade o De todas as riquezasMuitos dos seus livros aparecem em listas de romances essenciaisEm seus últimos anos apareceu Paraíso dançante (2019) y Ele jura (2020), que confirmam uma energia criativa sustentada.
Sua ligação com a editora Feltrinelli durou décadas e o incentivo do editor foi fundamental. Grazia Cherchi, que o ajudou a refinar uma voz já poderosa. Críticos e leitores concordam que ele construiu um "território Benni" reconhecível desde o início.
Fora da Itália, sua obra teve grande circulação: é lida em universidades e escolas, e títulos como O Bar Sob o Mar, Elianto ou Margherita Dolcevita encontraram novas gerações de leitores em espanhol e outras línguas.
Instituições e colegas lamentaram a sua morte, destacando a sua singularidade: “uma figura multifacetada e inconformista, capaz de unir a sátira e a poesia”, disse o Ministro da Cultura italiano, Alessandro GiuliNas redes sociais e nas livrarias, o luto é expresso na sua melhor forma: abrindo livros.

O rastro de um autor permanece transformou a língua em um playground e a sátira como ferramenta para o pensamento. Entre bares de bairro e planetas distantes, animais improváveis e crianças rebeldes, sua obra ensina que o riso também pode ser uma forma de inteligência e consolo.
